sexta-feira, 1 de julho de 2011


 
O SISTEMA DE COTAS RACIAIS
A desembocadura de águas imiscíveis

Qualquer pessoa mediana sabe que a solução do problema da desigualdade social brasileira passa necessariamente pelo investimento na melhoria da educação básica e fundamental da rede pública de ensino. O que pouca gente sabe é que esta solução tende a nunca acontecer, pois, assim como as águas dos rios Negro e Solimões não se misturam, apesar de caminharem juntas, em decorrência das diferentes temperatura e velocidade, de uma e de outra, assim também caminha a ganância capitalista e as demandas sociais, lado a lado, com nítidos pesos políticos diferenciados, para uma e outras, com reflexo preocupante, para não dizer desastroso, no grande rio barrento da sociedade brasileira.

De há muito que se ouve falar na necessidade de pesado investimento na educação brasileira, só que o poder público nunca adota esta medida, porque, segundo reza a cartilha capitalista, na escassez de recursos, deve-se socorrer primeiramente a economia (leiam-se bancos e o grande capital), preterindo-se, sempre, o favorecimento das camadas inferiores da sociedade.

O sistema de cotas adotado por diversas universidades públicas brasileiras, como forma de amenizar a situação dos alunos secundaristas oriundos de escolas públicas em geral, e dos negros em particular, tem sido a única alternativa capaz de atenuar os efeitos dessa injusta e vergonhosa desigualdade educacional e social reinante secularmente no Brasil, fruto do desleixo político do Estado brasileiro, desde a proclamação da República. Apesar de tão nobre, essa iniciativa acadêmica tem sido sistematicamente difamada na mídia elitista nacional, como tem que se esperar que seja, qualquer benefício feito ao povo.

Afora a chuva de ações judiciais impetradas contra tal medida, na sua maioria infrutíferas, parte da elite brasileira não se cansa de bombardear esse sistema, que está em vias de se tornar lei federal, alardeando continuamente, na grande mídia, diversas alegações contrárias às cotas, julgando-as injustas e, principalmente, separatistas, tentando demonstrar, num malabarismo argumentativo risível e caótico, que o princípio constitucional republicano da igualdade será afetado. Temem, também, que o acesso à universidade pelas cotas raciais rebaixará a qualidade dos cursos acadêmicos, haja vista o despreparo dos alunos beneficiados. Há ainda outros argumentos, menos valiosos de tão sofríveis, de que se valem para tentar derrubar o projeto de lei em trâmite no Congresso Nacional, como, por exemplo, o de que não há racismo no Brasil.

Cabe, aqui, destacar dois pontos: primeiro, que ninguém está mais apto a exigir igualdade de direitos no Brasil do que a população afro-descendente, que, por mais de três séculos proveu e sustentou, com suor e sangue, as riquezas do país, e que, quando obteve sua migalha de liberdade, foi abandonada à própria sorte, sendo preterida em favor dos imigrantes europeus, como que num último golpe de misericórdia; segundo, que vestibular nenhum mede a capacidade de alguém em frequentar um curso superior, apenas define quem entra ou não, em função das vagas oferecidas. Isso se verifica em razão das circunstâncias especiais que o envolve, capazes de provocar o nervosismo juvenil, que afeta o desempenho dos candidatos no momento do exame.

Além disso, não é o aluno que faz a escola, mas o contrário. Isto vale também para a estrutura acadêmica. Nem todos os alunos da afamada USP são excepcionais, há medíocres também, assim como há uns e outros em todas as universidades do país. Portanto, o ingresso por meio das cotas não diminui em nada a qualidade dos cursos universitários. Para quem gosta, há estudos sérios demonstrando estatisticamente o desempenho igualitário entre cotistas e não-cotistas.
Mas por que ser a favor das cotas raciais, e não, sociais? Porque a dívida histórica do Brasil para com os negros, que todos a admitem, é uma tremenda e secular Injustiça (com "I" maiúsculo), que, por si só, já justifica o tal sistema de cotas. Além do mais, fica meio complicado separar negro de pobre. Contudo, só quem é negro (e há negrômetros, sim, a polícia e seguranças de shopping center que o digam) sabe o quanto dói a chibata da discriminação, talvez mais do que o chicote do capataz. Não sei se felizmente ou infelizmente, mas o racismo no Brasil só é exposto quando há uma afronta inesperada do negro contra um branco. É quando o cartão da  madame não passa na maquininha de crédito, ou é quando uma empregada doméstica embarca desavisadamente no elevador social, ou ainda quando há um negro sentado na poltrona ao lado no avião. Aí, saem os insultos guardados no mais recôndito da alma: negrinha, crioula, pixaim, cabelo de bombril, etc, sem contar as famosas e famigeradas piadinhas/anedotas sobre negro, memorizadas aos montes pelos humoristas. É de um sofrimento só.

Por tudo isso, as cotas são extremamente necessárias a uma mudança de paradigma social, com reflexo positivo na auto-estima dos descendentes da raça. Mas, para que isso ocorra,  precisamos urgentemente (não dá para esperar mais) de que haja mais personalidades negras, mais juízes negros, mais delegados negros, mais médicos negros, mais generais negros, mais governadores negros, mais prefeitos negros, mais congressistas negros, mais professores negros, mais empresários negros, mais industriais negros, mais engenheiros negros, mais cientistas negros, mais artistas de TV negros, mais modelos negros, mais comerciais de TV negros, mais jornalistas negros...E menos jogadores de futebol negros, menos policiais negros, menos bandidos negros, menos empregadas domésticas negras, menos mendigos negros, menos traficantes negros, menos prostitutas negras, menos miseráveis negros, menos trabalhadores braçais negros, menos garis negros, menos meninos de rua negros, menos analfabetos negros e mais paz social pra todos.

E assim, o Brasil possa desembocar num rio multicor de águas límpidas.

Gerson Alves de Souza - 1º Sargento do Exército Brasileiro.  
 

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